
No Brasil dizem que a caatinga, vegetação típica do interior semi-árido do nordeste, é símbolo de resiliência. Não é sempre tão branca, nem tão seca, a caatinga explode vida, história de poderes, de cangaço e da resistência de Canudos. Ao contrário do estereótipo de fome e degradação, a caatinga é onde nasce a árvore umbuzeiro, alimento para quem atravessa o sertão, um espaço de luta e identidade de humanos e não-humanos. É nesse cenário que o Instituto Federal do Sertão Pernambucano (IFSertão-PE) campus Salgueiro, instituição de ensino técnico, superior e de pós-graduação, fundou o Núcleo de Extensão de Redes Comunitárias, cujo objetivo é promover a democratização do acesso à internet e a conectividade significativa.
Atualmente, o Núcleo está trabalhando na implantação de uma rede comunitária localizada em uma comunidade quilombola, como é denominada toda comunidade negra tradicional, construída e habitada por descendentes de africanos escravizados no Brasil. Esse projeto pioneiro visa proporcionar não só conectividade significativa por meio da instalação de uma rede de internet no território, mas também oferecer treinamento e capacitação tecnológica tanto para os estudantes do IFSertão-PE, sensibilizando-os para o problema da desigualdade de acesso à internet e às tecnologias digitais por populações vulnerabilizadas, quanto para a comunidade quilombola, buscando garantir a sustentabilidade de sua rede.
Com apoio da iniciativa Redes Locais (LocNet na silgla em inglês), por meio da chamada de microfinanciamentos realizada em agosto de 2024 e que financiou 11 projetos no Brasil, o IFSertão-PE decidiu promover três dias de uma maratona hacker reunindo estudantes e membros da comunidade quilombola, indígena e de pequenos agricultores da região de Salgueiro. O evento foi uma oportunidade para introduzir os primeiros passos para a instalação de uma rede comunitária e pensar respostas aos inúmeros desafios que podem surgir nesse processo.
Entre os dias 28 e 30 de março de 2025, cerca de 70 estudantes e membros das comunidades locais participaram de atividades de formação em temas tecnológicos, que foram de discussões conceituais sobre redes comunitárias, a aprendizado sobre modos de sustentabilidade e manutenção de redes, até a elaboração de um projeto com orçamento e a lista de tecnologias a serem utilizadas.
Construindo juntos
No primeiro dia, os participantes foram introduzidos à noção geral de redes comunitárias por meio da mesa redonda “Rede Comunitária, que bicho é esse?”, que contou com a participação de representantes da LocNet (iniciativa liderada pela APC e Rhizomatica), ISOC Brasil, Cetic.br e Instituto Bem Estar Brasil. Ainda, Nathalia Foditsch da organização Connect Humanity apresentou a noção de conectividade significativa. O dia encerrou com uma apresentação cultural de músicas da região, um momento de alívio e entretenimento antes da intensa jornada de trabalho que seria dia seguinte.
No segundo dia, 10 grupos foram formados e uma parte participou de oficinas técnicas sobre como instalar uma rede comunitária, enquanto a outra participou de oficinas temáticas como o passo a passo para montar rede, tendo como referência o manual de redes comunitárias da LocNet/APC, introdução aos editais de fomento às redes comunitárias, como os da Internet Society (ISOC), e experiências que geram sustentabilidade por meio do microempreendedorismo local. Durante a tarde, os grupos voltaram a se reunir para, a partir dos conhecimentos trabalhados na manhã, desenvolverem um projeto de rede comunitária a partir de desafios, simulados ou reais, estabelecidos pela organização do Hackasertão, tais como a instalação de uma rede em uma ilha de difícil acesso, ou em uma área afetada por constantes enchentes. Cada grupo recebeu a mentoria de dois membros da organização da maratona, sendo um especialista na área técnica, e outro em tópicos como editais, sustentabilidade e orçamento.
No último dia, cada grupo apresentou seu projeto e os organizadores atribuíram nota e escolheram a melhor proposta, aquela que receberia as antenas e roteadores para instalar uma rede na comunidade que seria definida pelo próprio grupo. Embora o modelo geral de hackathon estimule a competição entre os participantes, o Hackasertão buscou estabelecer um espaço de aprendizado coletivo e de colaboração. “Eu gosto de participar de atividades assim, sempre aprendo coisas novas” disse Auxiliadora, liderança de uma das comunidades rurais do entorno.
A cidade de Salgueiro é conhecida como a encruzilhada do nordeste por ser equidistante de todas as capitais da região. Mas para Antônio Bispo, intelectual, ativista e escritor quilombola, a encruzilhada não é apenas um cruzamento de caminhos, mas um espaço de diálogo, conflito e criação de novos saberes. É nesse cruzamento de saberes entre o institucional e o comunitário, entre o acadêmico e o ancestral, que o Núcleo de Extensão de Redes Comunitárias do IFSertão-PE resiste ao ensinar, por meio de projetos de extensão, práticas tecnológicas coletivas.
Marcelo Santos é professor do IFSertãoPE e desenvolve pesquisas e projetos voltados para redes comunitárias e inclusão digital, com foco em levar conectividade a comunidades em situação de vulnerabilidade. Desde 2019, quando participou do curso "Building Wireless Community Networks" da Internet Society (ISOC), vem aprofundando sua atuação nessa área, coordenando o primeiro Núcleo de Extensão em Redes Comunitárias do Brasil. É também idealizador do HackaSertão, evento que busca criar novas lideranças em redes comunitárias e fomentar o conceito de redes comunitárias e conectividade significativa. Sua atuação busca integrar práticas de ensino, pesquisa e extensão em tecnologias emergentes, com ênfase no desenvolvimento de soluções que contribuam para a inclusão digital e o desenvolvimento regional.
Criz é ativista e pesquisadora em acesso à internet e direitos digitais. Co-coordenou o projeto de microfinanciamentos da iniciativa Redes Locais (LocNet na sigla em inglês) em apoio a iniciativas no Brasil e Indonésia entre outubro de 2024 e maio de 2025.
A experiência compartilhada neste blog foi apoiada pela iniciativa Redes Locais (LocNet, na sigla em inglês), por meio de um ciclo de microfinanciamentos disponibilizados em uma chamada fechada para os parceiros da iniciativa e redes comunitárias no Brasil, Indonésia, Quênia e África do Sul.