
Em uma pequena sala de não mais do que 10 metros quadrados, oito ativistas pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAP+, do Brasil, do México e de Taiwan, nos reunimos para o lançamento do curta-documentário KOOL, dirigido por Rub(én) Solís Mecalco e fruto de um esforço coletivo da Assembleia de Defensores do Território Maia “Múuch' Xíimbal”. Foi o espaço que encontramos disponível para a realização deste encontro não programado no RightsCon 2025, um dos maiores eventos de direitos digitais do mundo, que reuniu nesta edição mais de 3 mil pessoas em Taipei.
O curta é narrado em torno da milpa, espaço onde se planta milho, feijão, batata-doce, macaxeira, mandioca, banana-da-terra, diferentes tipos de abóbora, melancia, melão, pimenta, e as sonajas para se fazer música. A milpa é comparada por uma pessoa maia da Península de Yucatán ao coração, “porque dele dependemos para comer e sobreviver”. Por outra, é definida como um “espaço sagrado” pois se há milpa, os povos produzem seu próprio alimento e têm “descanso contra as adversidades”, “liberdade”, “vida”, “pensamento”, “saúde” e podem realizar suas celebrações em agradecimentos aos entes criadores, que permitem a chuva e que as milpas prosperem. No curta, a milpa resiste em um território que está sendo ameaçado pelo desmatamento para a produção bovina, os megaempreendimentos imobiliários e de energia solar e eólica.
A experiência de resistência e de retomada dos povos maia do México foi um desfecho significativo em nossa participação no RightsCon deste ano, participação que teve como fio condutor o pensar sobre a centralidade das tecnologias digitais nos debates sobre justiça socioambiental. De que forma as tecnologias digitais estão imbricadas nos processos que ameaçam os territórios, as vidas dos povos tradicionais e o próprio planeta que a gente habita? Esta é a pergunta mais geral que guia o projeto Resistência e Resiliência: respostas colaborativas a ataques online contra defensores ambientais e que o Intervozes levou para o RightsCon em uma mesa de debates organizada com o IPRI - Indigenous Peoples Rights International.
O projeto, desenvolvido pela Associação para o Progresso das Comunicações, o Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, o IPRI, o Ogiek Peoples’ Development Program e o Manila Observatory through the KLIMA Centre, com apoio do International Development Research Centre, desenvolve pesquisas sobre as violências facilitadas pelas tecnologias que as comunidades tradicionais e indígenas do Brasil, do México, do Quênia e das Filipinas enfrentam. Busca também construir uma rede de ações para a mudança desse cenário.
As comunidades tradicionais e indígenas desses países enfrentam uma situação muito semelhante: estão marcadas por conflitos socioambientais. Elas sofrem, no conjunto, com ameaças de garimpeiros, madeireiros, do agronegócio, de mega empresas vinculadas às energias renováveis, especialmente eólicas, e de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas. Muitas vezes, o Estado e as big techs estão de mãos dadas com esses agentes no avanço da fronteira agro-mineral e do desmatamento.
Refletindo sobre as nossas metodologias: as comunidades afetadas no centro
A primeira reflexão que os representantes das organizações envolvidas no projeto levaram ao RightsCon se refere à metodologia. O projeto, em cada país, é realizado junto com as comunidades tradicionais e indígenas, a partir de uma metodologia de pesquisa participativa em que as elas são sujeitas e não objetos de pesquisa. Essa forma de ver a pesquisa nos mostra, em primeiro lugar, que conceitos como tecnologias, direitos digitais e violências facilitadas pelas tecnologias não têm apenas os significados consagrados nos fóruns e organismos internacionais, mas ganham outros sentidos quando pensados com e a partir dos territórios tradicionais. Em segundo lugar, que as soluções para os problemas causados pelas tecnologias digitais não podem se limitar a um debate de “especialistas”, mas trazer as comunidades impactadas para o centro.
As violências offline e online estão interligadas. O ambiente virtual reflete a violência das dinâmicas sociais, políticas e econômicas de cada contexto. A desinformação e o discurso de ódio, por exemplo, não ameaçam apenas indivíduos que são defensores ambientais, mas se dirigem muitas vezes a toda uma comunidade ou à coletividade dos povos tradicionais, buscando justificar os projetos capitalistas que avançam sobre os territórios, muitas vezes utilizando um discurso “verde” apoiado pelos Estados. O que temos visto acontecer, recorrentemente, é a atualização do projeto colonial.
Junto com a mineração, o agronegócio e as energias “verdes”, as comunidades têm vivenciado a entrada da internet em seus territórios igualmente sem consulta prévia. No Brasil, por exemplo, a conectividade tem chegado aos territórios da Amazônia não a partir de políticas públicas, mas sobretudo por meio dos satélites de baixa órbita da Starlink, projeto da SpaceX, de Elon Musk, um dos líderes da extrema direita global.
Satélites em órbita na região amazônica
A chegada da Starlink à Amazônia produz impactos econômicos, ambientais, sociais e culturais. No plano econômico, a autonomia dos territórios e a possibilidade de construir tecnologias que sirvam a seus propósitos se encontra ameaçada pela dependência dos monopólios digitais das grandes corporações globais. Além disso, começa a haver o endividamento de indivíduos e famílias por causa da proliferação dos sites de apostas no país.
No plano ambiental, para além do interesse das big techs pelos minérios e pela água existentes nos territórios tradicionais para abastecer seu lucro, os satélites da Starlink têm sido utilizados para atividades criminosas na região, sobretudo por garimpeiros que invadem terras indígenas. A internet, assim, sustenta as atividades ilegais dos geripeiros, por um lado, e favorecem as violência e ameaças aos povos indígenas, por outro.
No plano sociocultural, existem preocupações relacionadas às mudanças nos modos de vida tradicionais. O antropólogo Rafael Damasceno, pesquisador do Museu Nacional da UFRJ, vem desenvolvendo uma pesquisa em torno das mudanças nas cosmologias indígenas após a entrada dos satélites de baixa órbita na região amazônica. Os satélites, com seus pontos brilhantes semelhantes a estrelas, modificam o céu, um elemento importante para essas culturas. Logo, interferem nas cosmovisões indígenas. Além disso, há relatos de que a chegada repentina da internet interfere nas relações entre as pessoas, principalmente entre gerações.
Resistindo ao colonialismo nas suas novas formas
As observações iniciais da pesquisa nos levam a questionar as formas que vêm sendo pensadas para o combate às violências facilitadas pelas tecnologias. Em um cenário de dificuldade de acesso às tecnologias ou de acesso condicionado às big techs, em que a segurança digital não se refere apenas ao uso individual de celulares e computadores, mas a seu uso coletivo, e em que territórios como as milpas dos maias e os territórios indígenas da Amazônia estão sendo ameaçados, inclusive em suas cosmologias, não basta estabelecer regulações para diminuir as violências online, mas imaginar novas formas de se construir tecnologias.
Há séculos, os povos indígenas e de comunidades tradicionais vêm resistindo aos empreendimentos coloniais, enfrentando empresas, governos e seus megaprojetos desenvolvimentistas. É com esses saberes ancestrais que precisamos dialogar se quisermos inventar outros modos de vida possíveis nas ruínas do capitalismo.
A conversa sobre a construção desses novos imaginários tecnológicos junto às comunidades tradicionais terá continuidade durante o encontro anual da Association of Internet Researchers, que acontecerá de 15 a 18 de outubro de 2025, em Niterói, no Brasil.
Olívia Bandeira, Camila Nobrega e Gyssele Mendes são membros do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
A participação de Olívia Bandeira na RightsCon deste ano foi apoiada pelo fundo da APC Member Engagement and Travel Fund (METF).