
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um movimento popular urbano que surgiu no Brasil em 1997 com o objetivo de levar a luta por moradia digna para as cidades. Na medida em que a tecnologia passou a integrar o cotidiano e ser imprescindível para os trabalhadores, foi criado pelo movimento o Núcleo de Tecnologia do MTST, um espaço para criar “alternativas na prática, tecnologias feitas pelo e para o povo”. No âmbito das políticas habitacionais é preciso lutar contra a máquina de despossessão causada pela especulação imobiliária, que expulsa a população trabalhadora para as periferias. As disputas políticas que envolvem as tecnologias digitais e a infraestrutura da internet não são tão diferentes: é necessário enfrentar o monopólio das empresas internacionais (Big Techs), que hoje dominam as tecnologias e concentram riqueza a partir da violação da privacidade, disseminação de desinformação, violência e discurso de ódio, e da interferência nos processos democráticos.
Na busca por tecnologias livres e seguras para fazer esse enfrentamento e promover a soberania digital, o Núcleo de Tecnologia do MTST desenvolve uma série de projetos, como cursos de programação inspirados na metodologia do educador Paulo Freire, em que a leitura do mundo precede a leitura do código, desenvolvimento de tecnologias próprias, como as soluções encontradas pela Rede Mulheres do Maranhão para resolver o problema de pequenas cooperativas, e o Wi-Fi nas Cozinhas Solidárias, voltado para o acesso significativo e redes comunitárias nos territórios.
Source: Núcleo de Tecnologia do MTST
As Cozinhas Solidárias do MTST emergiram como iniciativa voluntária entre 2020 e 2021 em resposta à crise social e sanitária agravada pela pandemia da COVID-19, oferecendo refeições gratuitas para combater a fome. Em um momento em que o distanciamento social era uma medida essencial para conter a propagação do vírus, muitas famílias em situação de vulnerabilidade não tinham condições de aderir a essa prática, em especial pela necessidade de buscar sustento diário.
Muitas pessoas atendidas não tinham também acesso à internet, limitando as possibilidades de comunicação e participação em atividades da cozinha. Surgiu, então, a iniciativa de implementar conexão à internet gratuita nestes espaços, com as hipóteses que a conectividade ampliaria as oportunidades de acesso e transformaria as cozinhas em verdadeiros pontos de apoio digital.
Wi-Fi nas Cozinhas Solidárias
A proposta do Wi-Fi nas Cozinhas Solidárias começou modestamente: instalação de hotspots de internet em algumas cozinhas, permitindo aos frequentadores atividades antes impossibilitadas pela falta de sinal. Em 2024, completou-se um ano desde a implementação dos equipamentos e, no momento, o projeto já está presente em 11 cozinhas distribuídas em 4 estados brasileiros.
A maioria dos participantes nunca havia tido contato com termos relacionados à internet, soberania digital e redes comunitárias. Mas o uso de uma metodologia participativa – incluindo discussões em grupo, atividades lúdicas, analogias e termos em português, no lugar da linguagem estrangeira típica das tecnologias digitais – contribuiu para a criação de um ambiente acolhedor e colaborativo.
Em agosto de 2024, a iniciativa Redes Locais (LocNet, na sigla em inglês) lançou uma chamada para projetos de microfinanciamento para organizações parceiras e redes comunitárias, com o objetivo de apoiar iniciativas de implementação dessas redes, treinamento e capacitação, inclusão de gênero e pesquisa sobre demandas específicas e desenvolvimento de serviços locais. O Núcleo de Tecnologia do MTST foi contemplado com a proposta de fortalecer o trabalho realizado no projeto Wi-Fi nas Cozinhas Solidárias. O objetivo era disseminar e consolidar o conceito de rede comunitária em territórios autônomos e movimentos coletivos, realizando em São Paulo três oficinas de capacitação a partir das necessidades dos participantes e de atividades práticas de construção de redes.
Oficinas facilitadas por mulheres
A MariaLab, organização feminista que atua com segurança e cuidados digitais, foi parceira nessa iniciativa e fundamental para o sucesso das oficinas, permitindo a troca de experiências e a construção coletiva do conhecimento. A inclusão de mulheres como mentoras nas atividades trouxe novas perspectivas e soluções criativas para o uso das redes, além de ter estimulado a participação e o interesse das mulheres dos coletivos, que, de outra forma, poderiam ficar constrangidas ou inseguras de se envolverem nas discussões.
Na primeira oficina, no dia 01 de fevereiro de 2025, foram tratados temas como os monopólios sobre a tecnologia, geopolítica e soberania digital, uso de ferramentas seguras (como Mensageiros e VPNs) e os caminhos que uma mensagem percorre até chegar no celular de uma pessoa.
Já na segunda oficina, em 15 de fevereiro, foi apresentada a parte teórica do cabeamento e configuração lógica de redes, atividades práticas com clipadores e alicates, e instruções sobre cabos RJ45, instalação de conectores e configuração de roteadores em notebooks.
Na última oficina, em 22 de fevereiro, a Maria Lab apresentou as ferramentas construídas pelo coletivo e, na segunda parte, foi construído um protótipo de uma rede local, um provedor comunitário de fibra ótica, utilizando os cabos de redes e os roteadores configurados na aula 02 (além de um equipamento Mikrotik com DHCP, portal cativo e logs).
No total, houveram mais de 40 participantes nas oficinas que se inscreveram através do formulário disponibilizado nas redes sociais, com uma média de 25 participantes em cada oficina, além de 9 voluntários do MTST entre os participantes.

Como não se desenvolve uma rede comunitária, nem se conquista a soberania digital no espaço de um projeto e no tempo de três oficinas, o Núcleo de Tecnologia do MTST busca agora expandir as redes locais para mais territórios, junto com os participantes das oficinas.
A ideia é incorporar os conhecimentos técnicos explorados anteriormente, e continuar a colaboração com coletivos de tecnologia como a MariaLab, que tem uma prática feminista e interseccional da tecnologia. Sabe-se que em uma cidade tão extensa como São Paulo, que enfrenta severas chuvas, é difícil mobilizar a ida dos participantes até os territórios. Além disso, conteúdos como manutenção e sustentabilidade da rede não foram ainda abordados. Daqui pra frente, o Núcleo de Tecnologia do MTST pretende continuar aprofundando seus conhecimentos para implantação de redes comunitárias com internet de alta qualidade, baseada em fibra óticas, em territórios autônomos e em condomínios frutos de ocupação por moradia, inventando mundos possíveis, cidades e tecnologias populares.
Fábio Neves é um trabalhador da tecnologia especializado em desenvolvimento de softwares. Contribuiu para o desenvolvimento tecnológico em empresas, movimentos sociais e instituições sem fins lucrativos.
Tem se dedicado à criação de soluções voltadas à soberania tecnológica, com foco em acessibilidade, descentralização e autonomia das comunidades. Participa ativamente da construção e manutenção de redes comunitárias, promovendo o acesso democrático à internet e o uso crítico das tecnologias. Acredita na tecnologia como ferramenta de transformação coletiva e na força da organização popular para enfrentar desigualdades digitais e sociais. Para ele, tecnologia, direitos, dignidade humana, inclusão e construções coletivas estão entrelaçados — e é nesse entrelaçamento que constrói seu caminho.
Criz é ativista e pesquisadora em acesso à internet e direitos digitais. Co-coordenou o projeto de microfinanciamentos da iniciativa Redes Locais (LocNet na sigla em inglês) em apoio a iniciativas no Brasil e Indonésia entre outubro de 2024 e maio de 2025.
Fotos: Cortesia do Núcleo de Tecnologia do MTST
A experiência compartilhada neste blog foi apoiada pela iniciativa Redes Locais (LocNet, na sigla em inglês), por meio de um ciclo de microfinanciamentos disponibilizados em uma chamada fechada para os parceiros da iniciativa e redes comunitárias no Brasil, Indonésia, Quênia e África do Sul.