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Foto: Colin + Meg en Unplash

O geógrafo Diosmar de Santana Filho (2024) tem defendido em seus estudos que o racismo ambiental é crime de racismo, acima de tudo, porque se realiza na institucionalidade do Estado Racial, o pesquisador analisa os impactos e efeitos dos eventos e fenômenos climáticos, hídricos e geológicos nos territórios e comunidades vivendo as desigualdades no Sul Global.

Neste ensaio, tento aproximar o tópico das infraestruturas digitais e o (não) acesso à internet como mais um elemento desses séculos de exploração predatória. Arrisco afirmar que o que temos visto como método de implementação  das infraestruturas digitais, agravam não só o que tem sido chamado de racismo ambiental, mas também tem enorme potencial de agravar os eventos climáticos. O objetivo aqui é construir uma linha de pensamento que não desengate o racismo dos modos que as políticas de inclusão digital têm sido gerenciadas pelo estado brasileiro.

Na Cartografia da Internet, feito pela organização Coding Rights, as pesquisadoras e ativistas mostram as extrações ilegais de ouro e lítio, por exemplo, em terras indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami que são negociadas por fornecedoras das principais gigantes das tecnologias no mundo. Como um bom projeto de Norte Global, a expansão da internet baseada no modelo de negócio típico do extrativismo predatório que define quem “naturalmente” fornece a matéria prima e quem se beneficia dessas negociações que destroem territórios, que recriam novas formas de escravidão e impossibilitam a autonomia.

Para onde vai o lixo eletrônico, onde estão as principais indústrias das tecnologias e quais os modelos de trabalho em vigor neste campo da Governança da Internet. No Brasil, muito da exploração dos minérios é localizada em áreas rurais, entretanto, o mapeamento denúncia que em 2022, 32% dos domicílios rurais não tinham internet, o que engloba quilombos e terras indígenas. Tanta fartura de matéria prima explorada para atender a lógica de desenvolvimento das desigualdades. A TIC Domicílios de 2024, afirma que naquele ano eram 18% dos domicílios rurais sem acesso à internet.

Por isso, é importante compreender que o papel da 30a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (COP 30) sendo realizado em uma cidade na Amazônia brasileira, depois de 29 edições de acordos e negociações longe da maior sociobiodiversidade tropical deste Planeta, deve ser amplo e irrestrito no sentido de analisar todas as desigualdades impostas desde as primeiras colonizações que são insistentemente chamadas de desenvolvimento.

Outra questão que precisa ser debatida profundamente nesta Conferência é a exploração de petróleo na Bacia do Foz do Amazonas. Veja bem, é um enorme risco de promoção das desigualdades previamente estruturadas. Não existe grande projeto de barragem sem agravamento de desigualdades, incluindo o impacto em terras indígenas. Um risco ambiental previsto, anunciado e combatido pelos movimentos socioambientais.

Mas não é só da Amazônia que o Brasil vive. Outro risco é a implementação de data centers no país. Isso é um grave risco ambiental à costa brasileira, o prejuízo energético a comunidades nos entornos, a gentrificação, a perda de território, são custos muito altos em nome de um modelo de desenvolvimento que só serve à manutenção da colonialidade em países do Sul Global, especialmente em comunidades tradicionais. E os ataques aos direitos territoriais dessas comunidades, ainda acontecem com frequência indesejada.

As sociedades da região amazônica têm tido suas resistências testadas há muito tempo. Lembro das histórias contadas sobre a corrida pelo ouro na Serra Pelada e da esperança de enriquecimento de muitas famílias, dos homens que partiram e não voltaram, dos corpos soterrados, dos tombados pelas doenças e pelas disputas. Desde a chegada dos conceitos de desenvolvimento e integração nacional, os campos e as organizações sociais amazônidas fornecem riquezas.

As infraestruturas digitais são a nova promessa de desenvolvimento, com discursos governamentais de colocar a região no século XXI e ao mesmo tempo uma corrida pela narrativa tem sido feita com as dezenas de obras espalhadas por Belém em 2024-2025. São obras de infraestruturas de saneamento, de mobilidade urbana, de pavimentação asfáltica e de repaginação das áreas centrais da cidade. Parecia que o governo estava com medo de que vissem que Belém nunca tinha sido tão priorizada como nestes anos.

Infraestruturas sem políticas territorializadas resolverão as brechas?

A mais recente ação até a finalização deste texto é de que o Governo do Pará, por meio da Empresa de Processamento de Dados, a Prodepa, vai implantar 40 novos pontos de antenas 4G e 5G em Belém e modernizar a infraestrutura existente. É uma exigência do Comitê Organizador da Conferência e um compromisso a ser cumprido pelo Governo do Pará. Entretanto, quais são os modelos desses contratos? No início de 2025, vimos o prefeito de Belém fazendo abertamente uma publicidade para a Starlink em seu perfil no Instagram, maquiando o contrato com o nome de oportunidade.  

Em um passado recente, o Estado do Pará se beneficiou muito do Gesac e do Navegapará, mas o estado (como outras importantes cidades amazônicas) ficou descoberto de um pacote de políticas digitais que efetivasse o direito à comunicação por parte da população paraense. Isso encareceu ainda mais o fornecimento de internet na região e sobretudo asseverou a precariedade do acesso tanto em determinadas áreas urbanas quanto nas comunidades tradicionais rurais. 

O acesso à internet é um direito humano à comunicação e não estamos mais em tempo de duvidar disso ou de este não ser um ponto tensionado nos desafios à redução das desigualdades. Em ano de Marcha de Mulheres negras e de Conferência do Clima, as desigualdades estão ainda mais em pauta e o acesso à internet e as políticas digitais continuam em debate, tanto que o movimento da Marcha criou um comitê de tecnologia formado integralmente por pesquisadoras e ativistas negras que há mais de década se debruçam nos desafios postos pela comunicação digital.

Há anos temos sinalizado que na região amazônica, bem como em outras regiões, o acesso ainda não está garantido, além de precário é caro e quando implementado, segue o modelo brasileiro dos grandes projetos na amazônia que se auto declaram projetos de desenvolvimento. 

Atravessar os 74 Km em uma rodovia tão importante como a PA-483, conhecida pelos paraenses como Alça Viária e que atende mais de 1 milhão e meio de pessoas, quase que desconectados é inaceitável, como faremos com o direito à comunicação das milhares de pessoas que vivem de conectividades altamente questionáveis como a Starlink, dado seu modelo de negócio que tem colocado em risco populações indígenas e demais territórios à mercê do garimpo, da mineração, do agronegócio. 

Do KM 0 da Alça até a Perna Sul, por onde acessamos a PA-252, caminho para o Território Quilombola de Jambuaçu, com 15 comunidades quilombolas, são cerca de 40 Km, o único ponto onde pega sinal de 4G é no alto da ponte Almir Gabriel. A quem vive nas comunidades ao longo da estrada a internet é fornecida por satélite. Se são territórios negros e indígenas prejudicados pelas precariedades, é racismo porque reforça este sistema de poder econômico, como o trabalhador do campo submetido a pagar R$ 150,00 num serviço duvidoso porque é único disponível, mas esse mesmo trabalhador é cobrado do governo que tenha uma conta no gov.br, atualizada.

É racismo a decisão política de não dedicar atenção à comunicação digital destas comunidades. O Pará tem a terceira maior população quilombola do Brasil, o município do Moju tem 6.250 pessoas quilombolas, parte dessas comunidades têm tido acesso à internet pelo Conexão Povos da Floresta, a partir de kits com satélite de baixa órbita. Outras comunidades têm recebido a Rede Comunitária Floresta Digital e o Programa Norte Conectado, do Ministério das Comunicações. 

Racismo ambiental tem sido usado como definição sobre a ação específica de eventos climáticos que reforçam as desigualdades raciais a partir das consequências geradas para a população mais vulnerabilizada. Muitas vezes esses desastres são crimes cometidos por grandes infraestruturas de minério, de soja, de hidrelétricas, da não posse da própria terra, mesmo sendo todos esses direitos garantidos por lei: O direito à moradia, ao território, à saúde, à alimentação segura, educação e à comunicação. 

Sem políticas bem estruturadas e destinadas a essas populações, sem possibilitar acessos dignos à comunicação, o estado brasileiro continua interditando essas comunidades. E os impactos são muitos, comunidades inteiras migraram/migram em busca de melhores condições para sobreviver, ou das condições imaginadas como melhores já que ser forçada/o a ter que sair da terra de onde se cultiva sua identidade não pode ser considerada uma melhoria de vida. No caso das infraestruturas digitais, o racismo começa na disputa pela exploração da terra, segue na precariedade, avança no preço, tem sua apoteose no uso.

Redes Comunitárias / Iniciativas de Conectividade Centrada em Comunidades como alternativa para conectividade

O que defendemos é a participação comunitária nas decisões para infraestruturas e usos destas comunidades, além da compreensão de que internet querem e precisam, com possibilidade de aprendizado e gestão coletiva para a garantia da autonomia, bem como mitigar os impactos culturais e ambientais desses processos em seus territórios, não só combatendo como operam as infraestruturas racistas, como diminuindo as desigualdades. 

É nesta participação que são ancoradas as filosofias das redes comunitárias no Brasil e com isso têm sido os caminhos menos danosos até para combater o racismo nessas relações entre infraestruturas e comunidades tradicionais, porque pelos projetos de redes comunitárias é possível assegurar acessos e usos inclusive a partir dos protocolos próprios das comunidades. Mas é preciso um ambiente de incentivo favorável para isso.

Mas o que são as redes comunitárias? É importante que saibamos do que se trata, para reivindicar e para compreender sua necessidade em cada território, as Redes Comunitárias:

São redes digitais auto-organizadas por grupos de pessoas, como associações de bairro e/ou cooperativas, sem fins lucrativos, a fim de remediar a falta de conectividade. Essas redes buscam equipamentos mais acessíveis e mão de obra local. Elas existem em várias partes do mundo em diferentes formatos e basicamente são redes locais, que podem utilizar diferentes tecnologias, criadas e gestionadas por comunidades geralmente desatendidas pelo mercado das telecomunicações e pelas políticas públicas. Assim, a comunidade se organiza para gerar conectividade localmente e, a partir disso, integrar-se à internet por meio de algum link que pode ser comprado de um provedor comercial, um pequeno provedor local, ou também pode ser obtido junto a uma rede do setor público (e.g.: uma prefeitura, uma biblioteca, projeto Gesac, etc). (Manual de Redes Comunitárias, 2021, p. 10)

Em matéria para a Agência Brasil em 2025, Camila Maciel apurou um mapeamento feito pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) da existência de 63 redes comunitárias no Brasil, sendo que a cada cinco redes, quatro estavam localizadas em comunidades tradicionais. 

Não é só o bioma amazônico afetado pelos eventos climáticos e não são apenas as comunidades amazônidas que sofrem racismo, muitos territórios que passam por violências racistas podem diminuir esses danos com o debate tecnopolítico e o uso crítico destas ferramentas. Outros dados como identidade racial e escolaridade também podem ser consultados no mapeamento.

E o que significa ser centrada em comunidade? A reflexão também feita por Zanolli explica que: 

Numa rede comunitária, as funções são exercidas majoritariamente pela comunidade, podendo contar com a ajuda de parceiros (ONGs, empresas e mesmo o poder público), que auxiliam no planejamento, instalação e manutenção. Quanto mais parcerias a rede comunitária puder ter, melhor! Mas é importante que a comunidade, com o passar do tempo, possa ganhar cada vez mais autonomia na gestão e operação da rede. (idem)

Os valores das redes comunitárias seguem princípios declarados por muitas comunidades: autogestão, economia solidária, cooperativismo, fortalecimento comunitário, valorização das culturas e modos de vida dos territórios, entre outras características. São caminhos nos quais podemos ancorar a diminuição das desigualdades e mitigação do racismo ambiental nestes territórios, sejam eles rurais ou urbanos, é a ação política centrada nas comunidades que podemos esperançar para que a internet seja de fato um espaço para o exercício da democracia via comunicação. 

* O texto tem contribuições da pesquisadora Bruna Zanolli e do pesquisador e geógrafo Diosmar Marcelino de Santana Filho.

 

Referências: 

Santana Filho, Diosmar Marcelino de. A Terra gira entorno do Eixo Imaginário: Escala Racial Global na Natureza Terra / Diosmar Marcelino de Santana Filho -- Rio de Janeiro: Justiça Global, 2024. -- (Caminhos ; 4).

Manual das Redes Comunitárias. Brasil, 2021. Disponível em: https://www.apc.org/sites/default/files/manualredescomunitarias.pdf. Acesso 3 nov 2025. 

Thiane Neves-Barros is a PhD Communication Science. She was Mozilla Fellow (2024-2025), Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa) and part of the Transfeminist Network of Digital Care.